sexta-feira, outubro 19, 2012

Em conversa: Tiago Figueiredo


Teve estreia esta quarta-feira. E repete hoje, com entrada livre, uma vez mais no Grande Auditório da Gulbenkian (mas desta vez pelas 17.00 horas). Chama-se Intervalo e é um filme sobre a orquestra que este ano celebra o seu cinquentenário. Aqui fica a versão completa da entrevista que serviu de base ao artigo ‘Afinal o que faz o maestro quando sai do palco?’, publicado na ediçãoo de 17 de outubro do DN.

Porque optou por um modelo de documentário sem entrevistas nem narração em off? 
Enquanto espectador, gosto que um documentário me faça viver a ilusão de estar em locais inesperados, de acesso improvável, me dê a conhecer outras realidades de uma forma que roça o voyeurismo. Já fiz documentários com entrevistas, que ganham em conteúdo jornalístico por conseguirem nos depoimentos resumir situações, mas prefiro que as leituras de um documentário se aproximem do cinema, deixem uma maior ambiguidade de interpretação a quem vê. Narração em off estaria mesmo fora de questão. Tento que os meus documentários tenham muito mais das pessoas que filmo do que de mim. Claro que o filme é o meu olhar, as opções de filmagem e montagem são minhas, mas quero que as pessoas se esqueçam disso enquanto o vêm.

Já conhecia o universo da orquestra Gulbenkian antes de fazer este filme?
Comecei por conhecer a Orquestra Gulbenkian sentado na plateia do Grande Auditório, em criança e adolescente. Sempre tive imensa curiosidade sobre o que se passava atrás das portas do palco. Quem são aquelas pessoas? O que dizem uns aos outros antes dos concertos? Onde fica o maestro e o que faz quando sai do palco sob aplausos, antes de regressar para mais agradecimentos? Como são na intimidade as pessoas que tocam tão bem Mozart, Beethoven e Shostakovich? Serão sérias, serão nobres, serão “normais”, iguais a outras pessoas? O fascínio pela música e por este mundo levou-me a estudar piano, embora muito tardiamente, e ainda cheguei a ser professor no Conservatório Nacional. O convite para filmar a Orquestra abriu-me as portas dos bastidores. A sensação foi fantástica, como se fizesse parte daquele mundo a que tanto quis pertencer anos antes.

A orquestra aceitou bem a presença da câmara "intrusa"? 
O primeiro contacto que tive com eles foi numa digressão à Roménia e Arménia, em 2011, quando a Fundação me encomendou um pequeno documentário tipo Diário de Viagem, chamado Veradardz. Ao início não foi fácil, apesar de conhecer alguns dos músicos do meu percurso musical anterior. A presença da câmara e de uma pessoa estranha à equipa suscitou desconfiança e desconforto. Como tinha apenas uma semana para filmar nessa digressão, o trabalho de entrosamento foi difícil. Implicou conquistar muito rapidamente a empatia com as pessoas, para que elas me aceitassem, se sentissem confortáveis com a minha presença e com aquele objecto estranho sempre a apontar nas suas direções. O objectivo era tornar-me invisível dentro da orquestra, para conseguir captar o ambiente tal qual existe no dia a dia. Ou seja, conseguir que o filme se tornasse na tal viagem a lugares inacessíveis à maioria das pessoas.

E os maestros e solistas convidados, como reagiram à presença desse olhar inesperado? 
Depende sempre da personalidade das pessoas. Alguns aceitaram com grande generosidade. O Ton Koopman, por exemplo, que não só é uma pessoa de uma delicadeza extrema como está habituadíssimo a ser filmado, permitia que eu fosse atrás dele para todo o lado. Outros estavam mais ansiosos com os ensaios e concertos e ficavam mais desconfortáveis. Nesses casos optava por não os filmar nem forçar a relação, já que o mais importante ali era o funcionamento normal da Orquestra e o sucesso dos concertos. O Kiril Petrenko, um maestro portentoso que fez dois concertos memoráveis, aceitou-me bem nos ensaios, mas ficou muito irritado comigo quando o filmei antes de entrar em palco. Provavelmente não estive tempo suficiente com ele para ganhar o tal manto de invisibilidade. Filmei cerca de 7 concertos, mais coisa menos coisa. Muito material acabou por não ser incluído no filme.

O filme mostra tipos bem distintos de concertos, da música barroca com Ton Koopman a uma nada canónica leitura de Ligeti por Barbara Hannigan. Foi intencional este panorama amplo das músicas e épocas que percorre o repertório da orquestra?
Pretendi abarcar repertórios diferentes, fazendo justiça à capacidade de adaptação e perfeccionismo artístico que a Orquestra Gulbenkian atingiu nos últimos anos. Ainda pensei estruturar o filme fazendo um contínuo cronológico no repertório, mas acabei por preferir terminar com um dos momentos mais geniais e pungentes da História da Música, o Concerto em Sol, de Ravel.

Porque está tão pouco visível o maestro titular da orquestra? 
Reconheço a injustiça dessa omissão, mas existem razões plausíveis. Por um lado, por contingência de agenda do Maestro Lawrence Foster, que esteve grande parte da temporada a dirigir outras orquestras, como convidado, não coincidindo comigo no período de filmagens. Acaba por entrar no filme, com o Concerto de Ravel, mas optei por retratar antes outros maestros por já ter no Veradardz um retrato bastante fiel da personalidade divertida, corrosiva e provocadora do Foster.

Como escolheu que músicos seguir mais de perto? 
É um dilema eterno, quando se filmam organismos compostos por tanta gente. Seguir poucos e ter personagens no filme, com arcos narrativos, ou seguir vários e dar um ambiente geral da sociedade que filmamos? A escolha foi feita tentando abarcar um leque representativo do grupo, mas também escolhendo os que melhor se adaptaram à minha presença. Não existe arco, porque a vida de uma orquestra é feito de pequenos ciclos, com os momentos de tensão no concerto e distensão nos intervalos.

Nota-se um fascínio do olhar da câmara pela arquitetura das salas da Gulbenkian... 
É difícil não se ficar fascinado por aquele edifício. É uma arquitetura intemporal, que não envelhece. Como todas as obras-primas, todo o Bach, as últimas obras de Beethoven, o Concerto de Ravel...

Que vida terá este filme depois da sua exibição na Gulbenkian esta semana? 
Gostava que fizesse o circuito de festivais, pudesse captar interesse de uma televisão, e, finalmente, fosse editado em DVD, como documento de memória. Quando se comemorarem os 100 da Orquestra Gulbenkian vai ser bom recordar 2012.